domingo, 3 de janeiro de 2010

Antieuclidiana, uma orquídea forma-se.

Enfim rompemos o ano de 2009, e 2010 chegou, trazendo consigo a renovação de nossas esperanças, como se tudo o que aconteceu ano passado se dissolvesse. As lágrimas derramadas, as misérias, as tragédias presenciadas, os escândalos políticos, as crises sociais e financeiras, tudo isso se desfaz, e emerge aquela sensação de que este novo ano será diferente. O Brasil finalmente vai dar certo. Inflamos o peito de orgulho! Fazemos promessas, renovamos os desejos e a esperança brilha em nossos olhos. Só que o ano passa, e vemos que tudo aquilo que era "festa" se acaba.

Acabam os sonhos de que neste ano as coisas seriam melhores, de que, enfim, iríamos nos livrar da corrupção que assola este país, de que as pessoas teriam um pouquinho mais de dignidade, de honestidade e seriam menos mesquinhas e egoístas. Mas o que acontece é o inverso: o meio-ambiente continua a ser destruído, as diferenças e preconceitos aumentam, a liberdade diminui, a violência continua apavorando e o povo sofrendo. Ah, este povo sofredor e esperançoso que é o brasileiro.

Somos o país da esperança. Nunca a perdemos, e, quando ela parece estar se apagando, vem o esporte nacional salvador: o futebol. Conquistamos mais um título, mais uma Copa, somos os melhores! Todos os problemas parecem sumir. Não há mais fome, miséria, violência, preconceito, não há mais nada. E o povo brasileiro se orgulha de não ter mais nada, porque o nosso bom e velho salvador da pátria teve mais uma conquista. Agora, estamos ainda melhor.Vamos sediar uma Copa do mundo e uma Olimpíada! O que mais poderíamos querer? O Brasil é o futuro, "ninguém segura este país". Batemos no peito com aquele nacionalismo ufanista para falar: "Sou brasileiro". Tudo é maravilhoso, o Rio de Janeiro continua lindo, continua sendo...Temos a Cidade Maravilhosa!

O pedinte do semáforo, a criança que morreu por inaninação na rua, o assaltante, o traficante, o desonesto, todos eles viram pó e são varridos pelo vento. Nada mais nos importa. Nossas esperanças estão renovadas. Afinal, é uma Copa do mundo em território nacional. Ora, não sejamos assim tão cegos. Na verdade, não somos cegos; simplesmente tapamos os olhos para aquilo que é incômodo. Criamos um grande muro para tapar nossa visão, e o enfeitamos com desenhos de giz, coloridos e utópicos. Aí não precisamos ver que do outro lado o muro está pichado em cores mortas, que há alguém já sem esperança, sem comida e sem dignidade; que deixou de ser humano em sua essência. Mas nisso não pensamos, é indigesto. Melhor pensar que em 2010 o Brasil ganhará pela sexta vez um troféu. Assim podemos dormir melhor à noite enquanto o outro morre, lentamente.

Por isso, inicio o ano de 2010 dessa forma: com um pé na utopia e o outro na realidade. Estou esperançoso, embora cético e irônico. Penso que podemos ser melhores em nossa individualidade, ser mais dignos, mais honestos, mais bondosos. Podemos acabar com alguns medos e preconceitos pessoais, deixar de ter aversão ao próximo. Desconstruir o muro de utopias, limpando cada desenho colorido levemente com um pano, descolorindo-o pouco a pouco. Depois pintamos o lado pichado, com pinceladas delicadas e leves, para em seguida derrubá-lo. E assim teremos um ano de 2010 recheado de sonhos, de esperanças e acontecimentos agradáveis.


Deus,
eu faço parte do teu gado:
esse que confinas em sonho e paixão,
e às vezes em terrível liberdade.
Sou, como todos, marcada neste flanco
pelo susto da beleza, pelo terror da perda
e pela funda chaga dessa arte
em que pretendo segurar o mundo.
No fundo, Deus,
eu faço parte da manda
que corre para o impossível,
vasto povo desencontrado
a quem tanges, ignoras
ou contornas com teu olhar absorto.
Deus,
eu faço parte do teu gado
estranhamente humano,
marcado para correr amar morrer
querendo colo explicação, perdão
e permanência.

Lya Luft.

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